Além dos sentidos: Sobre a Virtude e o Conhecimento
Cícero afirmou, “Os olhos veem apenas o que traz consigo o poder de ver”1, essa frase destaca que a verdadeira percepção não depende exclusivamente dos sentidos, mas de uma capacidade interna, relacionada ao conhecimento e à virtude, que permite ao indivíduo compreender a verdade. Essa noção, enraizada na tradição estoica que influenciou Cícero, sugere que a virtude não é apenas um hábito moral, mas uma faculdade que afina o intelecto para discernir o que é essencial, transcendendo as aparências superficiais e preparando o espírito para uma compreensão mais profunda da realidade 2.
Originalmente essa frase tem sentido bem delimitado e preciso, Cícero não acreditava na existência de um orador a parte da filosofia, antes deveria ser capaz de "ver" a realidade assim como ela é; a filosofia daria ao orador capacidade de tocar nas partes da alma humana com eficácia. O sentido da frase é prático e pouco espiritual. No entanto, podemos reinterpretá-la, ou melhor dizendo, cristianizá-la, estendendo sua aplicação para além do âmbito retórico romano e integrando-a a uma visão teológica onde o "poder de ver" ganha dimensões espirituais.
Na verdade, sem os ensinamentos dos filósofos, não podemos discernir o gênero e a espécie de cada coisa, nem, por uma definição, revelá-la, nem dividi-la em partes, nem decidir que coisas são verdadeiras e quais são falsas, nem discernir as consequências, ver as contradições, distinguir as ambiguidades. E que dizer da natureza das coisas, cujo conhecimento fornece abundância ao discurso? E que dizer da vida, dos deveres, da virtude, dos modos de ser? Sem um vasto aprendizado destas coisas, justamente, é possível dizer ou compreender algo? 3
A expressão traz a ideia de que existe um “poder de ver” presente no homem que é condição prévia ao conhecimento; esse poder é o próprio conhecimento filosófico, mas também, na história, foi amplamente interpretado como a virtude, ou seja, a disposição moral e espiritual para reconhecer e acolher a verdade. Essa interpretação ressoa com a ética das virtudes, onde o "poder de ver" atua como uma lente interna que filtra o conhecimento, permitindo que o indivíduo não só observe, mas integre a verdade em sua conduta diária, promovendo uma vida alinhada ao bem comum e à excelência pessoal 4.
Alguns teólogos cristãos, como Hugo de São Vitor, argumentam que a virtude e a humildade são fundamentais para a sabedoria, pois "o verdadeiro conhecimento", como diz Hugo, "surge quando o espírito está iluminado e o coração verdadeiramente disposto à verdade, comprometendo não apenas a mente, mas a transformação interior" 5. Essa visão de Hugo enfatiza a educação como um processo holístico, onde a virtude não é um fim em si, mas o meio pelo qual o aluno se eleva da ignorância à sabedoria divina, integrando leitura, meditação e oração em uma jornada de purificação espiritual que ecoa a disposição interior ciceroniana 6.
Tomás de Aquino complementa essa perspectiva afirmando que as virtudes intelectuais e morais aperfeiçoam a alma, tornando a razão apta a alcançar a verdade; além disso, a graça divina, pela fé, fortalece esse poder de ver, tornando possível o conhecimento pleno da realidade e de Deus 7. Aquino, influenciado pela filosofia aristotélica e estoica via Cícero, argumenta que essas virtudes são hábitos operativos que orientam a inteligência para o bem supremo, e só pela infusão da graça divina o homem transcende suas limitações naturais, alcançando uma visão beatífica que une razão e revelação em harmonia perfeita 8.
Nas Escrituras, Moisés ilustra esse princípio ao clamar:
“Senhor, se achei graça aos teus olhos, mostra-me os teus caminhos, para que eu te conheça e ache graça aos teus olhos” 9.
Aqui, entende-se que o princípio do conhecimento parte de Deus, que concede ao homem o verdadeiro “poder de ver” e conhecer. É a iluminação divina que abre os olhos do coração para a compreensão profunda da verdade. E o homem, em posse desse conhecimento revelado, tem ainda mais disposição para conhecer; aqui também fica evidente o contrário, a saber, que o homem, não tendo conhecimento fica ainda mais susceptível à ignorância, onde se cumpre a palavra que diz: "E a quem não tem, até o que tem lhe será tirado" 10. Essa dinâmica bíblica reforça a ideia de que o conhecimento é cumulativo e dependente da graça inicial, onde a ausência de busca espiritual leva a uma perda progressiva de discernimento, contrastando com a virtude que multiplica o "poder de ver" através da obediência e da fé ativa 11, como se vê na continuação do episódio em Êxodo 33:18-23, onde Deus, em Sua graça soberana, permite a Moisés uma visão parcial de Sua glória, ilustrando que o verdadeiro conhecimento é um dom divino que protege e eleva o homem 12.
Cícero enfatiza no De Oratore que a virtude consiste primeiramente em sabedoria, que permite perceber a verdade e suas causas:
"Virtus est in primis sapientia, quae in singulis rebus veritatem et causam cognoscit." ("A virtude consiste principalmente na sabedoria, que reconhece em cada coisa a verdade e sua causa.") 13
Além disso, a verdadeira eloquência está unida a uma alma virtuosa, pois só quem possui essa virtude pode “ver” as coisas com clareza moral e intelectual, persuadir e instruir com eficácia. Essa conexão entre virtude e oratória em Cícero revela que o "poder de ver" não é isolado, mas aplicado na esfera pública, onde a sabedoria virtuosa guia ações justas e beneficia a sociedade, antecipando conceitos cristãos de testemunho e proclamação da verdade 14.
Santo Agostinho resume essa ideia ao afirmar que o homem permanece nas trevas se Deus não iluminar os olhos do coração:
“Se Deus não iluminar os olhos do coração, o homem permanece nas trevas.” 15
Essa iluminação é essencial para o conhecimento verdadeiro, que só se alcança com a disposição do espírito para a verdade e para o amor divino. Agostinho, que admirava Cícero e foi profundamente influenciado por sua retórica – especialmente pela leitura do Hortensius, que despertou seu amor pela filosofia e pela busca da sabedoria –, transforma essa noção ciceroniana em uma teologia da conversão. Ele "cristianiza" o "poder de ver" de Cícero, reinterpretando-o não apenas como uma virtude intelectual humana, mas como um dom despertado pela graça divina, levando o indivíduo de uma visão mundana e limitada para a contemplação da Cidade de Deus, integrando a razão filosófica com a luz revelada em uma busca incessante pela beatitude eterna 16.
Essa ideia se desenvolve ainda mais em obras como as Confissões, onde Agostinho descreve sua própria jornada das trevas do erro para a luz da verdade, clamando: "Ó Verdade, Luz do meu coração, não me falem as minhas trevas. Por elas me deixei escorregar e obscureci-me. Mas, mesmo no fundo desse abismo, sim, desse abismo, amei-vos" 17, enfatizando que a graça divina penetra as profundezas do coração para dissipar a ignorância e fomentar o amor eterno a Deus, correlacionando-se com seus ensinamentos no De Trinitate sobre o conhecimento de Deus como um processo interior de iluminação que une fé, razão e caridade 18.
"Os olhos veem apenas o que traz consigo o poder de ver" é o tipo de frase que representa precisamente o princípio da graça divina iluminando os olhos do entendimento para que possa ver além dos sentidos. A sua autoria, além de ser de Cícero, é de Deus que é a própria Verdade.
Footnotes
- Cícero. (46 a.C.). De Oratore (S. C. de Lima, Trad.). Rónai – Revista de Estudos Clássicos e Tradutórios, 11(1), 23–42. https://doi.org/10.34019/2318-3446.2023.v11.40515 ↩
- Del Vecchio, F. B. (2024). As virtudes nas obras de Marco Túlio Cícero. Transformação, 47(1). (Explora a concepção estoica de virtude em Cícero como discernimento da verdade). ↩
- Cícero. (46 a.C.). De Oratore (S. C. de Lima, Trad.). Rónai – Revista de Estudos Clássicos e Tradutórios, 11(1), 23–42. (Citação extraída do contexto retórico sobre a importância da filosofia para a eloquência). ↩
- Cochrane, C. N. (1957). Cristianismo e Cultura Clássica. (Discute a ética das virtudes em Cícero como base para o conhecimento moral). ↩
- Hugo de São Vitor. (c. 1130). Didascalicon de Studio Legendi. (Edições acadêmicas sobre educação e virtude medieval). ↩
- Taiguara Fernandes. (2024). Como estudar: Hugo de São Vítor e a fórmula da inteligência. (Aprofunda a jornada espiritual no aprendizado de Hugo). ↩
- Tomás de Aquino. (1265-1274). Suma Teológica. (Parte II-II, sobre virtudes intelectuais e morais). ↩
- Atena Editora. (2023). As virtudes intelectuais superiores à moralidade em Tomás de Aquino. (Análise da integração de razão e graça). ↩
- Bíblia Sagrada. Êxodo 33:13 (Almeida Revista e Atualizada). ↩
- Bíblia Sagrada. Mateus 13:12 (Almeida Revista e Atualizada). (Princípio de multiplicação e perda do conhecimento). ↩
- The Bible Says. (2025). Êxodo 33:18-23 explicação. (Comentário sobre a graça divina como fonte de conhecimento). ↩
- The Bible Says. (2025). Êxodo 33:18-23 explicação. (Comentário sobre a graça divina como fonte de conhecimento, enfatizando a visão parcial da glória de Deus concedida a Moisés). ↩
- Cícero. De Officiis Sobre os deveres. (Tradução própria, Livro 2). ↩
- Faculdade Jesuíta. (2022). Natura, Lex e Virtus: A relação entre virtude e direito em Marco Túlio Cícero. (Conexão entre virtude e ação pública). ↩
- Agostinho de Hipona. (397–400 d.C.). Confissões. (Edições acadêmicas e traduções modernas). ↩
- Alex Castro. (2020). Agostinho de Hipona. (Influência de Cícero na teologia agostiniana); Gutiérrez, J. L. (2021). O Protréptico de Aristóteles, o Hortênsio de Cícero e a influência em Santo Agostinho. Basiliade, 3(5). (Detalha como o Hortensius iniciou a busca espiritual de Agostinho, cristianizando conceitos ciceronianos). ↩
- Agostinho de Hipona. (397–400 d.C.). Confissões, Livro X. (Descrição da luz divina dissipando as trevas do coração). ↩
- Agostinho de Hipona. (415 d.C.). De Trinitate. (Desenvolvimento sobre o conhecimento de Deus através da iluminação interior do coração). ↩
Heleno Salgado